Pedro II(...) Muitas vezes sucede, meus senhores, que uma simples palavra, um paralelo apenas esboçado, defina e precise um caráter como um termo se define e precisa por outro termo de rigorosa sinonímia.

D. Pedro II suscitou ao mais fecundo gênio poético da França a recordação de Marco Aurélio, o doce filósofo, de cujo sereno e compassivo estoicismo, mais alto e mais puro que o do próprio Seneca, sobrelevavam duas paixões absorventes ­ a idolatria da pátria e a idolatria do dever.

O monarca brasileiro foi um filósofo e um cristão convicto: a filosofia dominou-lhe a inteligência, como a moral cristã lhe dominou o coração. O mesmo, pois, é dizer que foi um austero e um bom.

Assim também dois fatos, traindo a ação destas influências preponderantes, se monstram capitais no transcurso do seu reinado: o desenvolvimento da instrução geral, acompanhando e auxiliando o da riqueza pública, e, acima de tudo, a admirável pertinácia em levar a cabo uma generosa reforma, contra a qual, desde o começo, se conjuraram os mais inconfessáveis e intransigentes egoísmos.

"É geralmente sabido, escrevera Herculano a propósito dum livro de Gonçalves Dias, que o jovem imperador dedica todos os momentos que pode salvar das ocupações materiais de chefe do Estado, ao culto das letras. Mancebo, prende-se à mocidade, aos homens do futuro, por laços que decerto as revoluções não hão de quebrar, porque o progresso social não virá acometê-lo inopinadamente nas suas crenças e hábitos".

Enganou-se o lúcido pensador, não quanto ao fato que apontava, mas quanto à profecia que formulou, e em que não levava em conta o desrespeito e a ingratidão dos homens. Porque D. Pedro II foi acusado - como o fôra Marco Aurélio, de querer impôr a sua filosofia ao povo ­ de se absorver por demais no estudo, em prejuízo dos negócios do estado.

Possuindo uma assombrosa memória e uma erudição vastíssima, dotado, como observou Tissandier, duma inteligência verdadeiramente universal, ­ sábio, literato e artista ­ naturalíssimo era, sem dúvida, que as suas acentuadas predileções em muito lhe ocupassem o tempo e lhe absorvessem a atenção. Nunca, porém, justiça é confessá-lo, o largo saber e a clara e ávida inteligência de D. Pedro se voltaram em prejuízo do Brasil, que tirando consideração e respeito dos raros dotes por meio dos quais, entre sábios e entre monarcas, se distinguia o seu soberano, na paixão que este votava ao estudo encontrou o fator que mais eficazmente concorreu para que as escolas, as bibliotecas e os mais variados estabelecimentos de ensino rapidamente se multiplicassem no império.

Ao mesmo tempo, por um outro ideal - o da alforria definitiva do escravo - anciava o seu coração, como os dos mais nobres propagandistaas brasileiros.

O congresso de Paris adotara em 1867 a resolução de apelar para os governantes e para a opinião dos povos, a fim de que a escravidão e o tráfico fossem imediata e radicalmente abolidos. (...)

Casavam-se (...:) com os sentimentos de D. Pedro as doutrinas genuinamente cristãs dos moralistas, que, como S. João Crisóstomo nas Homilias, pensavam que a lei de Deus não se prestava a reconhecer a desigualdade firmada pela lei dos homens entre a raça livre e a escrava. E foi a harmonia destas duas leis que êle se esforçou por ir pouco a pouco estabelecendo, visto que tal desideratum, como em seu nome o govêrno brasileiro respondia à mensagem da Junta emancipadora francesa, obtemperava ao que "o espírito do Cristianismo desde há muito reclamava do mundo civilizado".

Para a obra da emancipação concorria, porém, o imperador muito antes do congresso lhe chamar a atenção para tal assunto, e tanto que datava de 1851, isto é, de dezesseis anos antes da reunião de Paris, a lei proibitiva da importação de escravos - providência sobre a qual chegara terminantemente a declarar, num despacho célebre, que colocava a sua própria coroa.

A lei de 1871, cortando mais fundo, preceituava a condição livre do ventre; como todavia não bastasse a satisfazer as aspirações de D. Pedro, suscitou este em 1884 a proposição de uma nova medida, que o parlamento rejeitou, mas que, a haver sido adotada, terminaria de vez, em dez ou doze anos, com o elemento servil.

Dissolvida a câmara, abriu-se renhida campanha eleitoral entre os abolicionista, que queriam a libertação de fato, e os emancipadores, que, iludindo as aspirações do imperador, se limitavam a um simulacro de emancipação. Coube aos segundos a maioria real, embora a nominal pertencesse ao partido adverso, e a proposta do govêrno teve de ser novamente adiada para melhor oportunidade.

Aludindo aos trabalhos precursores da lei de 1871, José de Alencar, que involuntariamente rendia o mais levantado elogio à entidade que verberava, dizia indignado: "Não se trata duma lei, trata-se duma conjuração do Poder. Desde 1867 que o Poder conspira, fatigando a relutância dos estadistas chamados ao govêrno, embotando a resistência dos partidos."

Nesta conspiração, assim tão acremente estigmatizada, não desesperou todavia D. Pedro um só instante. E a isto deveu sem dúvida o Brasil o não se ter realizado o triste vaticínio dum dos mais ardentes evangelizadores do abolicionismo ­ de que a sua pátria havia de celebrar o centenário do descobrimento da América com a bandeira coberta de crepes, enlutada pela aviltante mácula da escravidão. Se tal não sucedeu, se a bandeira brasileira pôde tremular sem mancha nessa comemoração recente, foi porque o imperador, depois de mil vicissitudes, de mil constantes esforços, depois de novamente batido por uma votação contrária do parlamento, logrou a final que a lei de 13 de maio de 18888, que, embora firmada pela Princesa regente, era a sua obra sotrre tôdas querida, expungisse imediata e incondicionalmente a escravidão do Brasil.

Quem bem atentar neste fato, em que, por ser culminante na história do império, mais detidamente insisto, há de admirar a perseverança, a tenacidade do soberano na realização do seu intento, fazendo concessões, torneando dificuldades, vencendo resistências, suscitando conflitos que lhe punham em risco a coroa, mas, com a obstinação e a forças delidora duma corrente que jamais retrocede sobre o seu próprio curso, abrindo sempre, constante e persistentemente, um leito viável para a sua idéia fixa.

Na evolução social, a relação de determinação entre o passado e o presente, entre os antecedentes e os subseqüentes, é uma das reivindicações em que mais insiste uma escola filosófica que no Brasil criou numerosos adeptos, e cujas doutrinas, porque fossem hauridas com sofreguidão demasiada, talvez em muito concorressem para a prematura subversão das instituições (...). Mas essa escola, que para si reclama a prioridade de haver feito da história uma ciência com leis de filiação definidas, é a mesma que acentua, pela pena de um dos seus eminentes primazes, o quanto é difícil aquela determinação, em que atuam elementos diversíssimos - uma vasta complexidade de condições inerentes à inumerabilidade dos órgãos, à variedade das influências, à complicação do maquinismo, à infinita seqüência de imprevistas conexões.

Elogio Historico de Alfredo da CunhaLonge me levaria, por conseguinte, o desenvolvimento das causas eficientes dessa revolução, para a qual a força das idéias se conjugou, e quase se confundiu, com a força e o ardor das ambições (...)

Havia, desde muito, entre os brasileiros, quem aspirasse à identificação do regime político com o das repúblicas limítrofes. Tal aspiração estimulava, não decerto a necessidade, mas a curiosidade duma mudança de instituições, duma renovação de cenário constitucional, visto que o império representava, aos olhos dos americanizadores intransigentes, uma anomalia antinômica com o natural modo de ser dos estados circunvizinhos.

Para os revolucionários idealistas, para o doutrinarismo especulativo ­ não menos, digamo-lo, que para o empirismo especulador ­ a prosperidade da nação dependia da conformidade governativa com os estados que a cercavam, e a sonhada república brasileira afigurava-se-lhes, como a Antichtona da velha escola itálica, um astro que, embora ainda não radiasse na constelação política do novo mundo, já se contava que devesse integrar, mais tarde ou mais cedo, o sistema geraö dos governos americanos.

Inevitável, pois, como era, o conflito de que devia resultar essa mutação essencialmente teatral, rompia em novembro de 1889, provocado pela indisciplina do caudilhismo insofrido, e instigado pelo descontentamento dos fazendeiros feridos nos seus interesses pela lei emancipadora de maio de 1888. Porque cumpre acentuar o fato de que foi a promulgação desta lei que abreviou os dias do império, como algumas dezenas de anos antes ­ notou-o atiladamente um abolicionista ilustres ­ fôra também a causa da escravidão que em não pouco contribuira para o ostracismo de José Bonifácio e para a entrega ao cadafalso dos nacionalistas pernambucanos.

(....)

Nenhum, porém, dos mais avançados partidos políticos brasileiros, nem os liberais de 1869, nem os republicanos de 1870, que sem trepidarem ante os perigos duma conflagração social proclamavam a urgência das mais profundas reformas, fazia questão essencial do humanitário princípio apostolado pelos abolicionistas. Os liberais prometiam a gradual ­ não a imediata ­ emancipação dos escravos, a qual confessavam "não ter íntima relação com o objeto do programa" que defendiam; e os republicanos, na mesma dúbia espectativa, mantinham uma igual contemporização com as instigações do interêsse e com os filantrópicos protestos do abolicionismo, apressando-se contudo a repudiar, logo que lhes foi atribuído, o levantado intuito de darem um golpe decisivo no estado servil.

Não me deterei, porque só pretendo apontar o estranho fato, a frisar o contraste entre o que havia de retrógrado, ou, pelo menos, de nimiamente conservador, neste procedimento que lisongeava egoísmos, e o que inversamente se alardeava de progressivo nos processos políticos, que, sem excluirem a idéia extrema da revolução, deviam conduzir à aquisição do poder. O que é todavia certo é que, a respeito de muitos dos que no Brasil se inculcavam reformadores de práticas obsoletas, não pode afirmar-se, como aliás tão justamente de D. Pedro se escreveu, que sempre colocassem os princípios acima de si mesmos, num plano sobranceiro ao das suas menos legítimas conveniências partidárias.


Numa festa memorável, com que as crianças das escolas celebraram na capital do império a lei de 13 de maio, um notável tribuno, em uma eloqüente apóstrofe à Princesa regente, dizia-lhe: "A lei que sancionastes abriu-vos os corações dos bons patriotas...É, Senhora, por esta forma, que firmareis o trono de vossos antepassados."

Enganou-se o ardente democrata, com o maior dos nossos historiadores se iludira falando do então jovem imperador D. Pedro. E - decepção formal! - era aquela mesma generosa providência que mais concorria para a revolução, que no ano seguinte ao da lei diamantina expatriava o imperante, pelo sábio escritor reputado ao abrigo das tempestades políticas (...).

Indiferente às sugestões da vaidade ­ e tanto que trocara o monumento que os seus compatriotas lhe haviam oferecido pela criação de novas escolas onde se educassem mais alguns filhos do povo ­ preferindo que o apreciassem como sábio a que o acatassem como imperador, as praxes, as exterioridades e etiquetas da Côrte prendiam-no pouco, prendiam-no menos do que seria mister para a segurança do cetro que empunhava (...).

E se o seu estoicismo culminou nas horas do infortúnio, (...) e que, após meio século de existência consagrada por inteiro a realizar a divisa que uma revolução triunfante veiu a inscrever no mais alto da bandeira que asteou, ainda tem a desventura de viver o bastante para vêr esse lema de "ordem e progresso" tornar-se, nas inevitáveis incertezas dum regime novo, de aspiração generosa para um melhor futuro, em simples memento evocador dum mais feliz passado!

O glorioso trágico inglês, que personificou em tipos de eterna verossemelhança as eternas e dominadoras paixões do homem, traçou um quadro da mais flagrante observação psicológica ao pintar, na cena da oração fúnebre de Marco Antonio sobre a morte de César, as tergiversações, as dubiedades do povo, que a mão hábil dum guia conduz, com a mesma docilidade, para o bem ou para o mal, para a justiça ou para o crime, e bastas vezes até para a vida ou para a morte.

(...)

* Elogio Histórico de Sua Magestade o Imperador do Brazil D. Pedro II Recitado na sessão solemne de 16 de abril de 1893 sob a presidencia de honra de Sua Magestade El-Rei o Senhor D. Carlos I na Real Associação dos Architectos Civis e Archeologos Portuguezes por Alfredo da Cunha. Lisba: Typographia Universal (Imprensa da Casa Real), 1893

 

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