BRASIL-EUROPA
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sede européia da
Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência
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República Federal da Alemanha
Vors. Prof. Dr. Antonio Alexandre Bispo
Documentos para o Estudo da História Cultural nas Relações Internacionais
Pedro II
Do Elogio Histórico proferido por Alfredo da Cunha em sessão solene da
Associação dos Arquitetos Civís e Arqueólogos Portuguêses, em
1893 *
(...) Muitas vezes sucede, meus senhores, que uma simples palavra,
um paralelo apenas esboçado, defina e precise um caráter como
um termo se define e precisa por outro termo de rigorosa sinonímia.
D. Pedro II suscitou ao mais fecundo gênio poético da França a
recordação de Marco Aurélio, o doce filósofo, de cujo sereno e
compassivo estoicismo, mais alto e mais puro que o do próprio
Seneca, sobrelevavam duas paixões absorventes a idolatria da
pátria e a idolatria do dever.
O monarca brasileiro foi um filósofo e um cristão convicto: a
filosofia dominou-lhe a inteligência, como a moral cristã lhe
dominou o coração. O mesmo, pois, é dizer que foi um austero e
um bom.
Assim também dois fatos, traindo a ação destas influências preponderantes,
se monstram capitais no transcurso do seu reinado: o desenvolvimento
da instrução geral, acompanhando e auxiliando o da riqueza pública,
e, acima de tudo, a admirável pertinácia em levar a cabo uma generosa
reforma, contra a qual, desde o começo, se conjuraram os mais
inconfessáveis e intransigentes egoísmos.
"É geralmente sabido, escrevera Herculano a propósito dum livro
de Gonçalves Dias, que o jovem imperador dedica todos os momentos
que pode salvar das ocupações materiais de chefe do Estado, ao
culto das letras. Mancebo, prende-se à mocidade, aos homens do
futuro, por laços que decerto as revoluções não hão de quebrar,
porque o progresso social não virá acometê-lo inopinadamente nas
suas crenças e hábitos".
Enganou-se o lúcido pensador, não quanto ao fato que apontava,
mas quanto à profecia que formulou, e em que não levava em conta
o desrespeito e a ingratidão dos homens. Porque D. Pedro II foi
acusado - como o fôra Marco Aurélio, de querer impôr a sua filosofia
ao povo de se absorver por demais no estudo, em prejuízo dos
negócios do estado.
Possuindo uma assombrosa memória e uma erudição vastíssima, dotado,
como observou Tissandier, duma inteligência verdadeiramente universal,
sábio, literato e artista naturalíssimo era, sem dúvida, que
as suas acentuadas predileções em muito lhe ocupassem o tempo
e lhe absorvessem a atenção. Nunca, porém, justiça é confessá-lo,
o largo saber e a clara e ávida inteligência de D. Pedro se voltaram
em prejuízo do Brasil, que tirando consideração e respeito dos
raros dotes por meio dos quais, entre sábios e entre monarcas,
se distinguia o seu soberano, na paixão que este votava ao estudo
encontrou o fator que mais eficazmente concorreu para que as escolas,
as bibliotecas e os mais variados estabelecimentos de ensino rapidamente
se multiplicassem no império.
Ao mesmo tempo, por um outro ideal - o da alforria definitiva
do escravo - anciava o seu coração, como os dos mais nobres propagandistaas
brasileiros.
O congresso de Paris adotara em 1867 a resolução de apelar para
os governantes e para a opinião dos povos, a fim de que a escravidão
e o tráfico fossem imediata e radicalmente abolidos. (...)
Casavam-se (...:) com os sentimentos de D. Pedro as doutrinas
genuinamente cristãs dos moralistas, que, como S. João Crisóstomo
nas Homilias, pensavam que a lei de Deus não se prestava a reconhecer
a desigualdade firmada pela lei dos homens entre a raça livre
e a escrava. E foi a harmonia destas duas leis que êle se esforçou
por ir pouco a pouco estabelecendo, visto que tal desideratum,
como em seu nome o govêrno brasileiro respondia à mensagem da
Junta emancipadora francesa, obtemperava ao que "o espírito do
Cristianismo desde há muito reclamava do mundo civilizado".
Para a obra da emancipação concorria, porém, o imperador muito
antes do congresso lhe chamar a atenção para tal assunto, e tanto
que datava de 1851, isto é, de dezesseis anos antes da reunião
de Paris, a lei proibitiva da importação de escravos - providência
sobre a qual chegara terminantemente a declarar, num despacho
célebre, que colocava a sua própria coroa.
A lei de 1871, cortando mais fundo, preceituava a condição livre
do ventre; como todavia não bastasse a satisfazer as aspirações
de D. Pedro, suscitou este em 1884 a proposição de uma nova medida,
que o parlamento rejeitou, mas que, a haver sido adotada, terminaria
de vez, em dez ou doze anos, com o elemento servil.
Dissolvida a câmara, abriu-se renhida campanha eleitoral entre
os abolicionista, que queriam a libertação de fato, e os emancipadores,
que, iludindo as aspirações do imperador, se limitavam a um simulacro
de emancipação. Coube aos segundos a maioria real, embora a nominal
pertencesse ao partido adverso, e a proposta do govêrno teve de
ser novamente adiada para melhor oportunidade.
Aludindo aos trabalhos precursores da lei de 1871, José de Alencar,
que involuntariamente rendia o mais levantado elogio à entidade
que verberava, dizia indignado: "Não se trata duma lei, trata-se
duma conjuração do Poder. Desde 1867 que o Poder conspira, fatigando
a relutância dos estadistas chamados ao govêrno, embotando a resistência
dos partidos."
Nesta conspiração, assim tão acremente estigmatizada, não desesperou
todavia D. Pedro um só instante. E a isto deveu sem dúvida o Brasil
o não se ter realizado o triste vaticínio dum dos mais ardentes
evangelizadores do abolicionismo de que a sua pátria havia de
celebrar o centenário do descobrimento da América com a bandeira
coberta de crepes, enlutada pela aviltante mácula da escravidão.
Se tal não sucedeu, se a bandeira brasileira pôde tremular sem
mancha nessa comemoração recente, foi porque o imperador, depois
de mil vicissitudes, de mil constantes esforços, depois de novamente
batido por uma votação contrária do parlamento, logrou a final
que a lei de 13 de maio de 18888, que, embora firmada pela Princesa
regente, era a sua obra sotrre tôdas querida, expungisse imediata
e incondicionalmente a escravidão do Brasil.
Quem bem atentar neste fato, em que, por ser culminante na história
do império, mais detidamente insisto, há de admirar a perseverança,
a tenacidade do soberano na realização do seu intento, fazendo
concessões, torneando dificuldades, vencendo resistências, suscitando
conflitos que lhe punham em risco a coroa, mas, com a obstinação
e a forças delidora duma corrente que jamais retrocede sobre o
seu próprio curso, abrindo sempre, constante e persistentemente,
um leito viável para a sua idéia fixa.
Na evolução social, a relação de determinação entre o passado
e o presente, entre os antecedentes e os subseqüentes, é uma das
reivindicações em que mais insiste uma escola filosófica que no
Brasil criou numerosos adeptos, e cujas doutrinas, porque fossem
hauridas com sofreguidão demasiada, talvez em muito concorressem
para a prematura subversão das instituições (...). Mas essa escola,
que para si reclama a prioridade de haver feito da história uma
ciência com leis de filiação definidas, é a mesma que acentua,
pela pena de um dos seus eminentes primazes, o quanto é difícil
aquela determinação, em que atuam elementos diversíssimos - uma
vasta complexidade de condições inerentes à inumerabilidade dos
órgãos, à variedade das influências, à complicação do maquinismo,
à infinita seqüência de imprevistas conexões.
Longe me levaria, por conseguinte, o desenvolvimento das causas
eficientes dessa revolução, para a qual a força das idéias se
conjugou, e quase se confundiu, com a força e o ardor das ambições
(...)
Havia, desde muito, entre os brasileiros, quem aspirasse à identificação
do regime político com o das repúblicas limítrofes. Tal aspiração
estimulava, não decerto a necessidade, mas a curiosidade duma
mudança de instituições, duma renovação de cenário constitucional,
visto que o império representava, aos olhos dos americanizadores
intransigentes, uma anomalia antinômica com o natural modo de
ser dos estados circunvizinhos.
Para os revolucionários idealistas, para o doutrinarismo especulativo
não menos, digamo-lo, que para o empirismo especulador a prosperidade
da nação dependia da conformidade governativa com os estados que
a cercavam, e a sonhada república brasileira afigurava-se-lhes,
como a Antichtona da velha escola itálica, um astro que, embora
ainda não radiasse na constelação política do novo mundo, já se
contava que devesse integrar, mais tarde ou mais cedo, o sistema
geraö dos governos americanos.
Inevitável, pois, como era, o conflito de que devia resultar essa
mutação essencialmente teatral, rompia em novembro de 1889, provocado
pela indisciplina do caudilhismo insofrido, e instigado pelo descontentamento
dos fazendeiros feridos nos seus interesses pela lei emancipadora
de maio de 1888. Porque cumpre acentuar o fato de que foi a promulgação
desta lei que abreviou os dias do império, como algumas dezenas
de anos antes notou-o atiladamente um abolicionista ilustres
fôra também a causa da escravidão que em não pouco contribuira
para o ostracismo de José Bonifácio e para a entrega ao cadafalso
dos nacionalistas pernambucanos.
(....)
Nenhum, porém, dos mais avançados partidos políticos brasileiros,
nem os liberais de 1869, nem os republicanos de 1870, que sem
trepidarem ante os perigos duma conflagração social proclamavam
a urgência das mais profundas reformas, fazia questão essencial
do humanitário princípio apostolado pelos abolicionistas. Os liberais
prometiam a gradual não a imediata emancipação dos escravos,
a qual confessavam "não ter íntima relação com o objeto do programa"
que defendiam; e os republicanos, na mesma dúbia espectativa,
mantinham uma igual contemporização com as instigações do interêsse
e com os filantrópicos protestos do abolicionismo, apressando-se
contudo a repudiar, logo que lhes foi atribuído, o levantado intuito
de darem um golpe decisivo no estado servil.
Não me deterei, porque só pretendo apontar o estranho fato, a
frisar o contraste entre o que havia de retrógrado, ou, pelo menos,
de nimiamente conservador, neste procedimento que lisongeava egoísmos,
e o que inversamente se alardeava de progressivo nos processos
políticos, que, sem excluirem a idéia extrema da revolução, deviam
conduzir à aquisição do poder. O que é todavia certo é que, a
respeito de muitos dos que no Brasil se inculcavam reformadores
de práticas obsoletas, não pode afirmar-se, como aliás tão justamente
de D. Pedro se escreveu, que sempre colocassem os princípios acima
de si mesmos, num plano sobranceiro ao das suas menos legítimas
conveniências partidárias.
Numa festa memorável, com que as crianças das escolas celebraram
na capital do império a lei de 13 de maio, um notável tribuno,
em uma eloqüente apóstrofe à Princesa regente, dizia-lhe: "A lei
que sancionastes abriu-vos os corações dos bons patriotas...É,
Senhora, por esta forma, que firmareis o trono de vossos antepassados."
Enganou-se o ardente democrata, com o maior dos nossos historiadores
se iludira falando do então jovem imperador D. Pedro. E - decepção
formal! - era aquela mesma generosa providência que mais concorria
para a revolução, que no ano seguinte ao da lei diamantina expatriava
o imperante, pelo sábio escritor reputado ao abrigo das tempestades
políticas (...).
Indiferente às sugestões da vaidade e tanto que trocara o monumento
que os seus compatriotas lhe haviam oferecido pela criação de
novas escolas onde se educassem mais alguns filhos do povo preferindo
que o apreciassem como sábio a que o acatassem como imperador,
as praxes, as exterioridades e etiquetas da Côrte prendiam-no
pouco, prendiam-no menos do que seria mister para a segurança
do cetro que empunhava (...).
E se o seu estoicismo culminou nas horas do infortúnio, (...)
e que, após meio século de existência consagrada por inteiro a
realizar a divisa que uma revolução triunfante veiu a inscrever
no mais alto da bandeira que asteou, ainda tem a desventura de
viver o bastante para vêr esse lema de "ordem e progresso" tornar-se,
nas inevitáveis incertezas dum regime novo, de aspiração generosa
para um melhor futuro, em simples memento evocador dum mais feliz
passado!
O glorioso trágico inglês, que personificou em tipos de eterna
verossemelhança as eternas e dominadoras paixões do homem, traçou
um quadro da mais flagrante observação psicológica ao pintar,
na cena da oração fúnebre de Marco Antonio sobre a morte de César,
as tergiversações, as dubiedades do povo, que a mão hábil dum
guia conduz, com a mesma docilidade, para o bem ou para o mal,
para a justiça ou para o crime, e bastas vezes até para a vida
ou para a morte.
(...)
* Elogio Histórico de Sua Magestade o Imperador do Brazil D. Pedro II Recitado na sessão solemne de 16 de abril de 1893 sob a presidencia de honra de Sua Magestade El-Rei o Senhor D. Carlos I na Real Associação dos Architectos Civis e Archeologos Portuguezes por Alfredo da Cunha. Lisba: Typographia Universal (Imprensa da Casa Real), 1893
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