BRASIL-EUROPA
PROCESSOS CULTURAIS EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS

 
 
Brasileiros em Kiedrich 1989. Arquivo A.B.E.

A revelação e o estudo de práticas tradicionais do Canto Gregoriano em São João del Rey (Minas Gerais), em 1970, e a procura de outros indícios dessas tradições em diferentes regiões do Brasil, causaram impacto no âmbito do movimento de renovação de perspectivas e de práticas culturais iniciado em São Paulo em 1964 e constituido em sociedade em 1968. Esses estudos e experiências de pesquisa e prática tiveram consequências para o debate internacional de décadas.


Sendo esse movimento caracterizado pelo direcionamento da atenção a processos - e não a esferas categorizadas da cultura - surgiu como fato extraordinário a constatação de práticas de canto e de acompanhamento instrumental que indicavam a permanência de antigas técnicas improvisadas polifônicas e configurações conhecidas da música popular em campo de tensões entre o modal e o tonal.


Esses estudos foram considerados no Centro de Pesquisas em Musicologia então criado e discutido em várias ocasiões, entre outros no Museu de Artes e Técnicas Populares da Associação Brasileira de Folclore e na área de Etnomusicologia e de Estruturação da Faculdade de Música e Educação Artística do Instituto Musical de São Paulo.


No âmbito do grupo de trabalho e do Coral Gregoriano da Nova Difusão, criado para discutir novas perspectivas e possibilidades práticas do Gregoriano à luz do direcionamento da atenção a processos, levantou-.se a possibilidade de considerar o desenvolvimento no Brasil em continuidade ou em paralelo às antigas escolas ou os dialetos conhecidos da história do Gregoriano.


O caso brasileiro dava impulsos a uma renovação dos estudos histórico-musicais da Idade Média, conferindo a êles orientação marcada por aproximações dos estudos culturais, revitalizando, de forma atualizada, estudos já antigos da musicologia comparada.


O prosseguimento desses estudos e a sua atualização em cooperação internacional constituiram pontos do programa de interações para a renovação de perspectivas e de práticas culturais iniciado em 1974 na Europa com o apoio do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD).


Os diálogos nessa área foram conduzidos com historiadores da música e com etnomusicólogos, salientando-se o Prof. Dr. Heinrich Hüschen, diretor do Instituto de Musicologia da Universidade de Colonia. Foram essas preocupações nascidas no Brasil que justificaram o estudo mais aprofundado da história da teoria musical e de concepções da Antiguidade e da Idade Média em referenciações com o Brasil.


Esses estudos vinham de encontro àqueles da pesquisadora portuguesa Dra. Maria Augusta Alves Barbosa voltados a épocas de transição entre técnicas de canto a várias vozes de configuração modal e a homofonia tonal na Renascença portuguesa e suas extensões.


No âmbito da pesquisa empírica na área da Etnomusicologia, desenvolveu-se em estreito relacionamento com pesquisas voltadas ao canto glagolítico na antiga Iugoslávia então em desenvolvimento.


No âmbito sacro-musical, as pesquisas brasileiras e a orientação da atenção delas decorrentes tiveram grande impacto, uma vez que se discutia na época relações entre a abertura a culturas musicais extra-européias no sentido das tendências pós-conciliares e a conservação e cultivo do patrimônio sacro-musical, em particular do Canto Gregoriano.


No simpósio etnomusicológico realizado no âmbito do IX Congresso Internacional de Música Sacra em Bonn, em 1979, as pesquisas do programa euro-brasileiro renovador deu, porém margens a mal-entendidos e instrumentalizações, levando a proposições inaceitáveis apresentadas como moções.


O tema permaneceu na pauta de debates, sendo considerado em várias ocasiões, entre elas no âmbito do Simpósio Internacional Música Sacra e Cultura Brasileira, realizado em São Paulo, em 1981, em Simpósio na Universidade Catóilica de Washington, em 1983, levando, por fim, a uma sessão especificamente convocada para esse fim no Museu de Manuscritos Musicais de Kiedrich no contexto do Colóquio Internacional de Tradições Musicais e Sincretismo, em 1989.


Encontro euro-brasileiro no Musikhandschriftenmuseum Kiedrich


Brasileiros em Kiedrich 1989. Arquivo A.B.E.
Kriedrich, no Rheingau, com a sua basílica de S. Valentim, do século XIV, foi visitada nessa ocasião por uma delegação de pesquisadores culturais do Brasil, acompanhados por musicólogos e teólogos alemães.


Não tanto a arquitetura medieval, o órgão de ca. de 1500 e objetos artísticos de seu patrimônio material estiveram no centro das atenções, mas a prática local do canto gregoriano em „dialeto germânico“ foi o objetivo da sessão.


Como único lugar do globo onde se cultiva o gregoriano com essa qualificação, Kiedrich surge como relevante local para o estudo de problemas similares considerados no Brasil relativamente à permanência de antigas tradições de práticas de execução em comunidades de consciência de suas tradições.


Entre os muitos aspectos discutidos, tratou-se de interrupções como consequência de legislações sacro-musicais, de influências unificadoras e destruidoras de diversidade por parte de autoridades eclesiásticas e de reformas, de auto-determinação cultural e de resistência a mudanças, do papel da transmissão oral de melodias, de tentativas de recuperação e dos problemas reconstrutivos.


Estabeleceram-se paralelos com situações de resistência à introdução de reformas tridentinas, da edição Medicaea no século XVII em várias partes do mundo, assim como o da introdução de cantos em vernáculo no século XVIII e, sobretudo, das prescrições de fins do século XIX e início do XX. 


Sob a perspectiva do programa euro-brasileiro, as atenções se concentraram sobretudo no problema da qualificação de cunho étnico-cultural ou nacional de „dialeto germânico“ ou regional como „Gregoriano da Mogúncia“.


Considerou-se que a concepção de dialeto germânico, embora ela mesmo histórica, introduzida por Peter Wagner (1865-1931), corre o risco de permitir outras interpretações. Sob uma perspectiva histórico-musical de orientação cultural, considerou-se o fato de que distinções melódicas e mesmo modais já terem sido registradas no século IX por Aurelianus de Réomé. Este teórico constatou configurações consideradas como teutônicas, distinguindo-se segundo outros autores cantores da capela palatina de Aachen/Aix-la-Chapelle daqueles dos lombardos ou romanos.


Em visita ao museu de manuscritos, onde se conservam 46 livros manuscritos de canto, os especialistas alemães e brasileiros consideraram, entre outros, o Graduale Romanum datado ao redor de 1300.



 
Brasileiros em Kiedrich 1989. Arquivo A.B.E.